Caros leitores,
Gosto tanto da vida que aprecio até a morte. Aliás, essa é a única certeza existente na condição humana, afinal, os animais não sabem de nada, incluindo o fato de que morrerão. Coisa interessante: a morte não gosta da simplicidade; a simplicidade leva a uma morte padecida. Este, é o caso de ‘Juma Ambrósia Nobre dos Reis Ferreira-Dutton’, cadela fila-brasileiro de 14 anos e meio, com efeito, já mais pra lá do que pra cá; está bem velhinha mesmo, mas, conserva todos os dentes. Não há simplicidade num cão morrer com todos os dentes, os cães, há bem poucos anos morriam banguelos. É preciso uma vida…
Se boa ou ruim é impossível quantificar; sabemos somente na hora da morte. Legal, eu poderia ter dado o melhor de meu prato e todas as sobras da mesa; oh, o tanto que ‘Juma’ desejou e deseja isso, fui medonhamente cruel… não! Algumas vezes despejei um copo de cerveja gelada em sua vasilha, ela gostou e, certa feita –eu estava bonzinho- após o quarto copo, começou a latir meio embolado. Quando ela partir, lá no céu canino, contará rindo sua estranha experiência etílica. Também nas datas festivas ganha um grande pedaço de osso da canela do boi, presente melhor não há; uma semana sem fazer mais nada além de roer o osso, quando abusa, enterra; mais tarde, desenterra e volta a roer; uma ‘latumia’ de dar gosto de ver. Fora essas pequenas bondades come só ração para cachorro; e agora lascou, comer só ração é bondade ou maldade? Se eu tivesse dado comida variada seria uma bondade –pra mim ou para ela?- enquanto estava jovem, então perderia os dentes, e agora era maldade; a ração além de completa, limpa os dentes dos cães garantindo uma morte cheia de dentes. ‘Juma’ padeceria, sem dentes não poderia comer; e padeceria eu que sem querer assumir os erros cometidos ao longo dos anos, passaria a culpa para a falta de ração própria para cães banguelos. É assim, a morte não admite simplicidade.
Maranhense de nascimento viajou dois dias até chegar aqui em casa. Recém desmamada, e junto com o irmão ‘Perilo Ambrósio Nobre dos Reis Ferreira-Dutton’ (homenagem ao lendário personagem do livro Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo) foi adotada pela idosa cadela ‘Mardy’, donde, deu-se uma curiosidade intrigante: ‘Mardy’ não tinha uma pata dianteira perdida quando pulou da caçamba da pick-up em movimento (é caso pra outro caso) daí, comia deitada. Eis, ‘Juma’ só come deitada; uns acreditarão em espirito canino, outros em puro aprendizado, mas, de fato, o saudoso ‘Perilo’ também só comia deitado. Sim, saudoso! ‘Perilo’ morreu jovem aos oito anos. Teve retenção urinaria, levei à clinica veterinária e após uma barbeiragem atrás da outra, passados quinze dias de internamento, o enorme ‘Perilo’ morreu. Era um final de semana prolongado, a veterinária viajou, a clínica fechou e o cão ficou sem trocar o curativo, pegou infecção; se tivessem me avisado eu teria ido trocar o curativo. É assim, a morte não admite a desídia. Ficou as histórias do enorme ‘Perilo’ no reino encantado do perto caminhar, onde, basta caminhar e tudo fica perto.
Digo uma coisa séria: quem tem medo não dorme aqui em casa não! Tem de tudo: aleivosia, latumia, eleutria, pantumia… olha, a casa da família Adams, perde longe. Certa feita acordei com um barulho surdo como se alguém estivesse batendo uma marreta na parede; putf, demorava um pouquinho, putf, mais um pouquinho, putf… e nada dos cachorros latirem! Imaginei que alguém tinha matado todos os cachorros, dezesseis no total, e estava batendo uma marreta para derrubar a parede. Homem de Jesus, eu já estava pronto pra levantar, estava pensando na parabellum, foi quando se deu o mais terrível do terrível, no silêncio da madrugada, esfregou (como se fosse o barulho de um carro rodando com o pneu vazio, na jante) na parede da casa: ráááááá terminou a parede; deu um tempinho e bumm bateu no muro! Sabe lá Deus como o muro não caiu! Menino! Me enrolei novamente. O caso é sério. Na próxima pancada, se acertar, bota a casa no chão! Deve ser um guindaste com aquelas bolas de demolição… e nada dos cachorros latirem! Voltou o barulho, putf; afinei o ouvido –eu, ainda enrolado- e puft. Calculei que estava no muro e deduzi que provavelmente o trem ruim primeiro derrubaria o muro, depois a casa. Ponderei: quando nada em desenho animado é assim. Qual é rosário, qual é terço, levantei e passei a mão foi no grande crucifixo da parede; tenho de sair protegido; sei lá. O problema é que até aqui ainda estava bom, a desgraceira ainda aconteceria; sendo eu um homem de pouca fé, tinha caído durinho da silva. Fui até a porta na ponta do pé, estava ouvindo as pancadas no muro; medi as consequências e caí na besteira de abrir a porta só um pedacinho, uma frestinha para dar uma olhada. Homem!! Os cachorros empurraram a porta, de vez, e entraram em casa. Uma confusão dos pecados! De saída perdi logo a unha do dedo mindinho do pé… tudo escuro, os cachorros todos arrepiados; eu nessa altura estava caído no chão da varanda, não sei como e foi minha sorte, senão estava correndo até hoje! Enquanto tentava, na base de muito tapa, me desvencilhar de ‘Cenoura’, ‘Margarida’, ‘Zanga’, ‘Preta’ –o valentão do ‘Perilo’ só achei com o dia amanhecendo, dormindo embaixo de minha cama- tive a visão da mula sem cabeça (certamente guiada pelo faro) vindo em minha direção… Foi muita sorte não ter conseguido levantar! Muita sorte mesmo. Ia correr para onde? Era a hoje quase finada ‘Juma’, que Deus sabe como, conseguiu prender na cabeça um balde; sem ver nada ficou zanzando. A cachorrada sabia que era ela, mas não entendia, ficaram com medo.
De todos os cachorros que tive, e tenho, quando morreram deixaram muitas histórias. É o espírito da vida perpetuado; olhando a vida achamos vida. É uma matilha tranquila, normal. Se algumas vezes não me deixou dormir, mais vezes ainda garantiram a paz de meu sono; nessa intrínseca troca, dou-lhes vida e eles me devolvem histórias. Ainda escreverei uma fábula acontecida num reino onde é só caminhar e tudo fica perto, aí…
Fim.