Caros leitores,
É possível vêr a alma de uma pessoa; é fácil. Também é possível vêr a alma de um escritor e até vêr onde, quando, e, pela observância da métrica, dizer em que condições ele escrevia. A métrica do livro Utopia, é corrida; São Thomas Morus sabia que seria matado. Agora, vem comigo; note bem a forma como o contista Jorge Amado fala de seu alter ego, Antônio Vítor. Note com mais atenção ainda a narrativa acerca de Ivone, sua namorada: tem 15 anos, é virgem, a mãe não pode trabalhar, tem quatro irmãos menores, não tem referência paterna; trabalha numa fábrica e com isso garante o sustento da casa. Pretende se casar com Antônio Vítor, plantar milho e viver feliz. Antônio Vítor sabia de tudo e conhecia os sonhos de Ivone, mas… “que era a vida diante de tanta fartura?”. Bem, ninguém diz o que não tem na cabeça, com efeito, nenhum autor escreve o que não tem na cabeça, logo, Jorge Amado, nesse ponto, deixa claríssimo que o dinheiro é o mais importante. A vida dos outros e a vida em sociedade é descartável; o dinheiro é o Deus soberano. Ummmmmm! ouço o Paralamas do Sucesso cantando: “Assaltaram a gramática/ Assassinaram a lógica/ Meteram poesia/ Na bagunça do dia a dia/ Sequestraram a fonética/ Violentaram a métrica/ Meteram poesia/ Onde devia e não devia/… e foi o feito pelo autor. Preso, sem saída, restou sacrificar tudo em favor de Antônio Vítor. Abro um parêntese para falar do estupendo livro de Giovanni Verga, Os Malavoglia. Com métrica perfeita, narrativa envolvente, inovadora, claríssima, prende o leitor até o surpreendente final. Verga faz a transição nos personagens, ao longo da vida; coisa que não é fácil.
Descartando a vida e desprezando a sociedade, Ivone é desconstruída em pró do ego de Antônio Vítor, afinal, jamais ele partiria deixando seu troféu: o cabaço de Ivone. Todos seus medos afloram pensando em perder para Zé ou Mané, em ser passado para atrás; de voltar rico e não achar o cabaço de Ivone. Não podendo o autor usar a força física de Antônio Vítor e temendo um não -certo!- de Ivone, restou, inverter a lógica, o senso comum. “Se não for com você será com qualquer um” disse Ivone -foi reduzida a uma mulher sem destino-. Esse padrão se repete no livro Capitães de Areia, quando Dora, ardendo em febre convida Pedro Bala para tirar seu cabaço. É um sem quê, para quê e por quê; tão somente explicado no vazio criativo do autor que, sem saída mas, sabendo do princípio do perdão, mata um personagem para glorificar o ego de outro personagem! pensamento raso. Esse padrão do vêr e tratar as mulheres continua; Antônio Vítor tem um relacionamento com Raimunda -uma negra, criada de dona Ana Badaró- baseado só nos prazeres carnais e na conveniência, enfim nas baixezas da alma. Note: Pedro Bala “conhece outras que faziam chiquê”, corre atrás da negrinha, derruba na areia e “me deixa que sou virgem”. O inferno de Dante é descrito nesse trecho do livro, por sinal, o mais feio trecho literário que eu já li; o pior. A métrica e a contextualização é a mesma para Antônio Vítor e Pedro Bala. “Peste, fome e guerra te acompanha desgraçado.” sentenciou a negrinha após o estupro.
Há de glorificar o seu Deus e o deus dinheiro exige glorificação. Antônio Vítor volta à sua terra natal, viaja “conversando sobre o cacau” e encontra seu filho com Ivone; não há conflito. Assunte bem o conceito do perdão (distorcido): tudo de errado foi perdoado. A vida de Ivone parou, ela se anulou e piedosamente criou o filho para esse momento; honra e glória de António Vítor. Para que haja glória numa vida é preciso matar outra vida? O deus dinheiro cobra: então a métrica foi atropelada, morreu. Pobre Ivone foi para o inferno de Dante e, talvez, reencarnada na negrinha gritou: peste, fome e guerra te acompanha desgraçado. O filho com Raimunda, que só aparece no final do livro, adulto; o banco onde Raimunda gostava de sentar; o regresso à casa antiga, na fazenda; as marcas das lágrimas no rosto de Raimunda, são sinais exteriores da peste incurável existente. A fome dos prazeres carnais proporcionados pelas raparigas, pela bebida, mostrou a Antônio Vítor sua pequenez de quando vendeu sua alma. Sem alma, teve de ser chamado e levado para a guerra por Raimunda. O “E você vai entregar” dito por Raimunda revela o momento anterior, da decisão dele. O autor preferiu matar Antônio Vítor a admitir o seu fracasso, o fracasso de seu herói. Entretanto, agora a métrica é perfeita: ele não morre só! leva Raimunda. A lógica de sacrifício, as custas dos outros e em benefício próprio continua.
Muitas são as formas de pinçar a alma de uma pessoa, dum autor. As marcas, as pegadas, o rastro que deixamos enquanto vivos, são expressões da alma. A ânsia de glorificar Antônio Vítor matou o corpo de Ivone, porém, eternizou sua alma. Que repete: peste, fome e guerra te acompanhe desgraçado.
Fim.
Alex Terra.