Caros leitores,
Hoje, domingo, dia de comer feijoada, cozido com carne gorda ou moqueca de ostra –puxadinha no limão-. Tudo muito gostoso para quem pode! Eu não posso, sou infartado. Daí, eu estou aqui, lavando folhas de alface, selecionando as mais tenras, cortando no tamanho que gosto, misturando com um quase nada de folhas de hortelã (deixa um gosto residual), cebolinha não pode faltar, coentro também não pode faltar, vinagre –ahh, aprendi a apreciar vinagre, estou usando um especial- na medida certa, umas gotas de limão para equilibrar o sabor e por fim, um pouco de azeite de oliva. Fica saboroso, digo até um manjar dos Deuses e, olha aí ó, foi só falar em Deus e o rabo do diabo aparece, sempre terá um espírito de porco que perguntará, “E o sal?”. Logo outro espírito perdido das trevas levantará a questão sobre a desumanidade de comer sem sal. Mais um, certamente o próprio lúcifer na forma humana – vixe, será humano? Ou só um corpo, uma massa com feições parecidas com humanos- fará uma longa, eloqüente, certíssima dissertação sobre os benefícios do sal; que tantos por cento do corpo é formado de sal; que o sal já foi moeda de pagamento; que o nome salário –hoje, os descolados falam pró-labore- deriva de sal. Tamanha é a importância do sal para o ser humano, que ele pretende sugerir a construção de monumentos para a adoração ao deus Sal e que sim!, É verdade, é falta de humanidade comer sem sal.
Fatos curiosos acontecem na vida de todos, ninguém escapa, eu mesmo, fui educado com uma visão bastante urbana e moderna, tudo que se relacionasse ao futuro era bom. Acho até, que tinha essa convicção, não tenho certeza, pois, só agora me veio essas lembranças da infância e estou botando no papel sem amadurecer, de que hoje estaríamos cozinhando com energia solar; talvez dissolvendo algum comprimido. Lembro! Que o jornal Tabu (em Canavieiras) distribuiu pílulas de café, após uma missão ao espaço de uma nave apollo. A reportagem falava, também, sobre a alimentação dos astronautas. Era muita modernidade.
Cresci nesse meio, a modernidade chegando rápido, tudo mudando; quando muitos ainda usavam banha de porco, lá em casa usava óleo de soja que chegavam em caixa da capital da Bahia. Na cidade ainda não tinha energia elétrica 24hs, os geradores da usina municipal funcionavam das 17 às 22hs; O resto do tempo, a geladeira, chuveiro quente, televisão e o principal, ferro elétrico –para a roupa não ficar com cheiro de fumaça- eram mantidos por um gerador. Lembro bem, ficava no fundo do quintal; uma verdadeira fortaleza inviolável, a prova da mais terrível criança e… a tentação é grande, a licença poética me permite, não! Para caneta! Não, eu não vou mentir, verdadeiramente não tinha fosso com crocodilos. No iniciozinho dos anos 80 do século passado, já morando na capital da Bahia, a bela cidade do São Bom Jesus Salvador, uma novidade e tanto apareceu lá em casa: um forno de micro-ondas. Eu, por essa época, era rapazote; recordo de tudo com a clareza da água cristalina, até a data da compra: foi no dia das mães e custou um dinheirão, o preço de um carro novo. Li todo o manual de instrução, não tinha resposta que eu não soubesse; desde o nome da cidade japonesa onde foi fabricado até a data do embarque no porto, no Japão. Lá de quando em vez, aparecia uma visita e, lá ia eu oferecendo logo alguma coisinha feita no tal do micro-ondas; menino de Deus! Quando ligava o bicho, tinha de sair todo mundo da cozinha fechar a porta e ficar esperando o ‘timmmmm’ final; uma aflição da bexiga. Uma vez tive de pegar um primo pela gola da camisa, o peste, ia se jogar pela janela. Para mim a glória, doutor no assunto ia explicando tudo com aquele ar professoral: é por causa da radiação etc, etc, etc… Vovó, no final do ano sempre passava uma semana lá em casa, foi chegando e esconjurando logo aquela coisa: jamais mastigarei algo que passe nesse esconjuro, o fogo deve estar esconso. Acho que cumpriu a promessa, vovó usava dentadura, com efeito, os dentes dela nunca mastigaram nada feito em micro-ondas. Chegado o natal deste dito ano, papai estava radiante, satisfeito, a safra das fazendas foi abundante. Na ceia, tudo de direito e mesmo que nunca tivesse bebido, papai gostava de comprar bons vinhos, principalmente os portugueses. Juntou alguns parentes, e o trem desandou; sempre tem aqueles espíritos atrasados cheios de cultura de televisão, sabe como é né, só a nata das notícias, a mais importante, a mais recente, uma sumidade do saber. Moço! Foi um tal de morrer gente por causa do micro-ondas, quanto mais vinho bebia-se mais casos de gente morta. Um tio que tinha servido no exército, insistia na tese da arma de guerra desenvolvida pelo exército americano, o pau quebrou! Lá pelas tantas até um catador de papelão que botou a caixa vazia do micro-ondas, na cabeça, morreu; Vovó, balançava a cabeça, soltava uns hum,hum,hum,hum,hum, e esconjurava tudo e todos. Ninguém é de ferro, a fome bateu; meia noite, o peru preparado no micro-ondas foi devorado. Muitos anos passaram sem que eu tivesse notícias de uma morte sequer. Foi um natal divertidíssimo.
As coisas iam bem, eu ainda não tinha duas décadas de vida e já tinha visto as pessoas deixarem de cozinhar no fogão a lenha, ainda estavam fazendo um breve estágio no fogão a G.L.P. porém, em vias de largar; agora festejavam o micro-ondas. Fiquei imaginando, imaginando, filosofando até – tudo bem, devido a pouca idade era uma pequena filosofia, deixa lá, um preâmbulo de filosofia- de como seria duas décadas adiante. Via-me na minha própria casa, cheio de responsabilidades e com vários robozinhos na cozinha, era só pedir e ficava pronto. Respirei fundo, a filosofia cansa; na minha jovem cabeça tinha tudo para dar certo, tudo estava inventado, faltando somente operacionalizar. Não tinha como dar errado.
O bichinho foi se popularizando devagar, apesar das pragas que o povo jogava; vou contar em segredo viu! Teve famílias, eu vi, que antes de levar um micro-ondas para casa levavam na igreja do Bomfim para o padre benzer, ainda amarravam umas fitinhas no esconjurado; Outras levavam para fazer seção de descarrego no pai de santo, era para a comida não fazer mal; algumas compravam e não usavam, era enfeite para a cozinha; teve até quem alegando falta de espaço na cozinha botava o bichinho na sala, tudo muito chique. O tempo passou, popularizou-se, inventaram a pipoca de micro-ondas; a coisa foi ficando boa com todas essas modernidades facilitando a vida e, sim minha pequena filosofia estava certa. Eu não sabia, mas, algo daria errado, ademais os alimentos prontos tem muito sal.
Casei, compramos logo um belo terreno para construir uma casa, a nossa casa. Recém-casado, a vida mansa, e que bela surpresa tive quando antes mesmo da planta baixa da casa ficar pronta, a mulher confidenciou-me seu sonho: um fogão a lenha!!Cheguei a ficar arrepiado; eu sonhava com robôs na cozinha e ter de conviver com um atrasado fogão a lenha, logo eu! O tempo passava e volta e meia vinha a pergunta, ”Quando vamos fazer o fogão a lenha?”. Finalmente, contrariando meu brio, fiz um pequeno fogão, no fundo do quintal, de forma que a fumaça fosse para bem longe da casa. O tempo passa, as casualidades acontecem, fatalidades existem e finalmente, após os cinquenta anos, enfartei. Estou proibido de comer sal. Assunta o trem.
Não apreciava comida salgada, gostava de pouco sal, agora, comer frango e peixe sem sal é um problema! Não tem tempero que fique bom. … E o esquecido fogão de lenha lá olhando para a gente. Homem de Deus que vergonha. Minha zelosa mulher, resolveu primeiro defumar, depois cozinhar no fogãozinho –nessa altura, de atrasado, virou fogãozinho- a lenha. Bela surpresa! Uma explosão de novos e deliciosos sabores, devolveu-me a alegria da boa mesa.
A modernidade que eu sonhei não aconteceu, tudo parou no micro-ondas. As pessoas continuam lavando pratos, cozinhando no fogão a G.L.P., reclamando da vida e, posso afirmar, quanto mais se usa o tal do micro-ondas mais as pessoas são infelizes e pouco saudáveis. Do tempo ingênuo, romântico, da casa de meus pais em que ele chegou a ser uma atração aos dias de hoje, –tornou-se o símbolo da comida congelada; da vida corrida- se passou menos de 40 anos.
Depois de todo esse lero, será que é falta de humanidade ou algo desumano comer sem sal? Tenho certeza da negativa; o tinhoso como sempre está errado. O que nos tornou humanos foi a capacidade do homem de aprender e adaptar-se a novas situações, mesmo que os olhos fiquem ofuscados por algum espetáculo e os ouvidos, iludidos por algum som; ”e por mais que o preconceito possa deturpar a vontade e o interesse obscurecer a compreensão a simples voz da natureza e da razão dirá o que é certo.”
Fim.
Alex.