Caros leitores,
São aplausos! Ouço e sinto sinceros aplausos; em êxtase também começo a aplaudir quem me aplaude; fossem falsos, ouviria, mas a forma como sentiria é outra. Quer vir comigo, vamos, vamos ao palco!
Não há nada além do palco e há solidão. Só a ribalta e quiçá algum aplauso. Uma infinita desolação, tudo puro, tudo cobrado, tudo que se tem é seu corpo e o dom dado por Deus. Eis a arte; é na arte que somos todos iguais. Deus nos iguala. Iguais, ouvindo um canto não vejo quem canta, sinto! sua arte. Não sei se aleijadinho foi aleijado, dizem; a mim chegou sua arte e há pintores loucos, poetas perturbados, compositores esquizofrênicos, escritores bêbados e tudo corrobora a máxima de que Deus fala pela boca das crianças e dos loucos, é quando no meu delírio criativo me pego declamando. Já não estou escrevendo; declamo! Ribalta, limite do alter-ego. Não há roupa, não há sapato, não há chapéu, como escolher o paletó, o chapéu, como escolher o sapato; uso uma bengala ou um guarda chuva, vou cantar e dançar na chuva, verão minha arte, me verão. Verão é o tempo dos temporais. Verão ou… Tudo é vida!
Aos sete anos mal completados estou na plateia. Luz, cores, o som da orquestra, um artista canta “Eu estou cantando na chuva/ Apenas cantando na chuva/ que sentimento glorioso…” a orquestra sobe, sobe, os sapatos batem no chão e fazem um intrigante barulho, estou gostando desse sapato, sapatinho da peste! Que me importa o resto? Gostei foi do sapato, força do inferno e não arrancou o salto; rapaz! [corta] Aos três anos compreendi a arte do perder. Perco coisas materiais para ganhar coisas espirituais. Dividi a minha bola de futebol para ganhar amigos com quem jogar. Não tenho mais a posse da bola (enquanto o jogo durar) mas tenho o prazer de fazer um gol no adversário e o orgulho de poder contar. Dividi a bola e ganhei o direito de me comparar, de ver os outros jogarem, de ser driblado, derrubado, de chorar, de poder triunfar, de invejar a jogada do outro, fazer o passe perfeito, contar o gol dos sonhos, e amargar com aquela defesa indefensável. Perdi a bola inteira, dividi; ganhei um polimento nos meus sentimentos. [corta e volta] Aplaudo com toda a força que tenho e tenho só enormes olhos e mãos. Só olhos, só mãos. Vêem, aplaudem. Algo agradou meu espírito, quero mais. Sapatinho da peste! A magnifica invenção civilizatória, o aplauso, paga ao artista enobrecendo quem bate palmas.
No palco, curvado em agradecimento, a mão no abdômen, ouço; os ouvidos dos artistas são treinados e ouço um aplauso diferente. Tem alguém digno de me criticar na plateia. Alguém que sentiu minha arte e com sua arte em fazer questão de esbanjar seus bons sentimentos, me aplaude; graças a este a cadencia dos aplausos muda; sim, são sinceros. Estou curvado, com a cabeça baixa e uma lágrima cai. Artistas! [corta, sai do teatro]
Não tem sapato no mundo daquele jeito. Como pode? Onde pode? Será que o chão do palco é diferente? Ou tem alguém na orquestra que todas as vezes que o cara bate o sapato no chão faz o barulho? É de lascar! Será que só sapato de adulto faz esse barulho? –Larga o sapato de seu pai aí! Não sei onde você aprendeu essa mania de andar batendo o salto do sapato, o vizinho do andar de baixo, já reclamou! Parece que quer usar ferradura. Rapaz, é mesmo! A ferradura no cavalo faz um barulho diferente… Não tem condições… Não tem como, sei lá. [corta, outro teatro, mesmo show]
Dizem: casa lotada. Eu uso desta vez sapatos de duas cores, chapéu panamá e bengala; danço e canto, o show continua “E eu estou feliz novamente/ Estou rindo de nuvens” [corta]. Os olhos arregalados não cabem no rosto, olha lá, olha lá, não é o mesmo sapato, não é o sapato que é mágico! Vou pegar quem é da orquestra que faz o barulho; bate na hora certinha, treino da peste. Deve estar escondido; não tem condições, bate na horinha; agora lascou, olha lá, o bico do sapato também faz barulho, será que o cara que bate errou? Mas está certinho, não perde uma! Vai acabar! Olhos e mãos nada mais. Aplaudo a beleza. Certeza nenhuma. A orquestra repete baixinho a música e no palco vejo meu ídolo, vi sua arte, senti sua arte, meu espirito infantil está leve e, ajudado pela curiosidade, sendo puxado para cima. [corta] Do palco sei que jamais verei a plateia, apenas sinto. Curvado, com o chapéu encostado no abdome, ouço. Sim, sim, meu crítico está na plateia, sinto a cadência, fui perfeito; sinto. Duas lágrimas caíram no palco. …ribalta. Os aplausos, [corta]
Jamais ninguém vai botar um cavalo dentro de casa, cada idéia. Até se quisesse! Ia estragar todo o entabuado do piso. Ferradura, cada idéia. Tem alguma peste ali! Força da disgrama. O salto deve ser de jacarandá; sapato com a borracha gasta. E no bico!!? Ontem levei uns cascudos para aprender a andar dentro de casa sem bater o salto no chão, agora, onde vou arranjar outro piso entabuado? [Corta. Outro teatro, mesmo show]
Sou informado que um fã, uma criança, quer vir até o camarim; quer conhecer o palco, vêr a plateia aplaudindo, talvez, até entrar no palco durante os aplausos. [corta] A cortina sobe, a orquestra toca, eu danço e canto; uso fraque, cartola e sapatos de palhaço (mandei lustrar o solado) “O sol está no meu coração/ E estou pronto para o amor”. [corta] Olha lá! Ué, o solado brilha? Como é que pode? Taco, taco, taco, taco está no tom da orquestra! E brilha! “O sol está no meu coração” mas não combina essa roupa com esse sapato! Parece que não bota tanta força assim não! E canta! Acabou. Aplaudo a magia, o encanto. Não ganhei nada e aplaudo. Não conheci o palco e aplaudo. Estou aplaudindo a mim mesmo, aplaudo minhas pequenas descobertas. [corta] No palco nada vejo, sinto. Curvado, com a cartola encostada no abdome, ouço. Sim, meu crítico está lá; sinto a cadência e ouço as suas palmas. Como é bom ser criticado, é a arte da crítica. A ribalta é o limite e jamais um artista deve tentar passar. [corta. Do lado de fora do teatro]
Enquanto ganho um saco de pipocas, noto a presença de um estranho que me estende a mão. Como a sua voz é parecida com a do artista do palco! Será ele? Quer conversar comigo; pergunta-me do que mais gostei no show. Caminhamos e não pode ser ele, seu sapato não faz barulho. Como assim? O que eu quero ser quando crescer? Sei lá! Quero conhecer o palco, participar do palco. [corta] Passeei com aquele menino até a próxima esquina. Contei a história do palco; lugar lindo de ser olhado e de onde se olhando nada se vê. Só os verdadeiros artistas suportam o palco. Onde a magia do sapato encantado é a mesma, tanto faz; do sapato de cinderela, ao sapato na janela esperando um presente ele se materializa em sua busca em descobrir a magia do meu sapateado. [corta]
E olhando aquele menino comendo pipoca, ele sumiu.
E olhando aquele senhor que me negou contar o segredo do sapato, ele sumiu.
E olhando para o papel, escrevi…
Fim.
Alex.