Caros leitores,
Conheci a região da caatinga há 25 anos. Foi numa noite de São João e enquanto percorria os 140 quilômetros que me separava do destino final, não vi balão, não vi bandeirolas, não vi fazendas enfeitadas, não vi folguedos, não vi o tradicional “São João passou por aqui”; só vi pequenas fogueiras em frente a casas fechadas. Foi uma decepção. Na cidade, também, não tinha grande ornamentação. Decepção total. Algo estava desconectado…
Quando eu era criança, ouvi histórias contadas por um tio-avô –o cara parecia Ray Conniff- muito viajado. Ele ia montando a enorme fogueira de pau de mangue –para queimar do São João até o São Pedro- e contando sobre os festejos no sertão: “Lá sim, enfeitam as casas. Botam bandeiras nas janelas, enormes bandeiras, de cima embaixo; botam bandeirolas na rua; deixam as casas abertas e é muita festa”. Contava e apontava para a janela da casa do outro lado da rua, descrevendo com minúcias como era a decoração, eu ficava maravilhado.
Aconteceu como num filme. No outro dia subi a chapada diamantina e fui passear em Mucugê, quando, quase morri de susto. Um filme foi passando em minha cabeça, cada palavra dita por meu tio-avô era, neste momento, ilustrada, aparecia aos meus olhos e absurdo dos absurdos, o vi lá, me chamando, me convidando a olhar para esse ou aquele lado, entrando numa casa e saindo em outra. Matei a primeira charada: sertão não quer dizer caatinga. Parei no cemitério bizantino. Algo está desconectado, aqui há cultura e riqueza. Para que seja verdade a pobreza e a miséria contada nos livros –muitas vezes floreada pelos professores- é preciso estabelecer a data em que a população se fixou gregariamente na caatinga; antes disso, a seca pôde existir sem nenhum efeito direto para a população. Naquele dia eu me impus a um desafio: estabelecer uma data, a mais aproximada possível, de quando a região do semi-árido foi povoada.
Mirei numa coisa e achei outra. Ainda não consegui estabelecer uma data, mas estou bem próximo. Digo mesmo que estou numa margem de erro de não mais que dez anos. Achei um Brasilzão; achei as raízes do povo brasileiro; achei o motivo do povo do Maranhão ter cultura num tempo em que no Rio Grande do Sul, o povo só campeava gado; achei as raízes da literatura de cordel. Uma de minhas grandes paixões, o estudo das grandes navegações, me fez achar o Nossa Senhora do Pilar, um vaso de guerra de 800 toneladas e oitenta e quatro canhões, inteiramente construído no estaleiro da ribeira no ano de 1715, na baía de Todos os Santos, em Salvador. A raríssima obra do economista português Raimundo José de Souza Gaioso, me fez entender o desenvolvimento mercantil; sua obra foi publicada em Paris no ano de 1818. Achei padres que eram príncipes e deparei com questiúnculas: como agradar o paladar de um príncipe, quando não se tem quase nada e o que tem não sabe preparar. –Nesse quesito achei uma jóia da culinária brasileira: o beijú. Na costa é preparado com leite de côco e cristalizado com açúcar (fica moreno). Na chapada diamantina é preparado sem misturas (fica branco)-. Eis o berço da riquíssima culinária brasileira. Deparei-me com viúva virgem! Ué, como pode isso! Mandar uma filha para o convento era verdadeiramente salvar a vida dela; por mais absurdo que isso possa parecer aos olhos de hoje. A dificílima decisão de um pai: manter o filho na fazenda deixando ficar matuto, ou mandar estudar em Portugal e ele voltar com doença venérea. De onde vem o hábito de comer macarrão com galinha caipira e sem queijo ralado; na costa o hábito era macarrão com frango assado e queijo ralado. O arroz com pequi, prato de gosto forte. O candombá (Vellozia Variabilis) usado para acender o fogo, é infalível. A incomparável carne assada na brasa do sebastião de arruda (Dalbergia Decipularis), a fumaça do óleo da madeira, confere um sabor único; quem come não esquece essa iguaria, eu comi feita no fogão a lenha na fazenda de minha mulher. É um capítulo a parte.
São as pérolas da vida, ver, minha querida mulher fazer mil e uma estripulias para não gastar um palito de fósforo. Acostumada a girar o botão e por mágica o fogo acender, quando estamos na fazenda à briga com a caixa de fósforos é ferrenha, acabando por no final do dia contar quantos palitos gastou; é de morrer de rir. Num dos lugares mais isolados do encosto da chapada diamantina, nem avião passa e ouve-se uma mosca voar, sentado na varanda vou arrumando a complexidade social, a complexidade dos relatos, a complexidade vivida. Vou entrevistando as pessoas, uma tem 99 anos, e repetindo as mesmas perguntas até que não fique dúvida. O antigo vaqueiro da fazenda é vivo, tem 96 anos e conta: “Meu pai era o vaqueiro daqui, eu era menino e lembro, o gado não comia na caatinga; a caatinga era muito perigosa. O limite era a estrada (de pedestre)”. Dessas entrevistas, achei um relato sobre o hábito –hoje é fashion- de vestir todos os filhos com roupas feitas da mesma peça de tecido. Outro relato corroborou: o pano era o mesmo porém os bordados eram diferentes.
A gestação do povo brasileiro, muito, aconteceu nos sertões. Não foi um bando de pessoas esquecidas, largadas ao léu. O povo brasileiro é fruto da mais rica, excepcional e exitosa experiência social já feita. Já tive dúvida hoje não tenho mais; o blog nasceu naquele dia há 25 anos, em frente ao cemitério bizantino afinal, que editor publicaria, se interessaria, por uma história dessa?
Logo continuaremos nossa viagem.
Fim.