Caros leitores,
Não, não foi em 1912. Há 117 anos a tecnologia que permitiu o povoamento da caatinga ainda não tinha chegado, ou barateado o tanto para tornar-se acessível. Era cedo.
Tive de morrer –sim, a mortificação!- desaprender, rever, ver e notar as nuança. Os hoje, “perdidos” vilarejos nas bordas dos sertões, outrora o que era? “Pouso dos tropeiros” repetem os professores nas escolas num papaguear eterno, preso a máxima: assim aprendi assim ensino. Duvidar disso é ir de encontro a um paredão intransponível; alguém ou algum, imediatamente saca Jorge Amado da cartola e com uma cara de desafiante filosofa: -nas lutas do cacau, Jorge Amado conta que um juiz seria transferido para apodrecer em alguma cidadezinha perdida do sertão; não foi, preferiu pedir a aposentadoria. Ao escritor cabe a licença poética; ao leitor cabe não repetir as licenças poéticas. Outro alguém, mais letrado, vai de Euclides da Cunha e “… as cadeias [de serras] de sincorá até às margens do São Francisco, era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes do sertão”. Euclides da Cunha era um homem perturbado pela vida e tendo vivido pouco, pouco tempo teve para arrumar as idéias; adiante, no mesmo livro, ele desdiz o dito. Caio Prado Júnior em seu livro, História Econômica do Brasil, é superficial e passa batido. É ficar no mato sem cachorro. Mas… e Dindinho? E Chiquinho? E sinhá Moçinha? E tio Rogacinho? E Dôca? E padre Martolli? E coronel Miúdo? E Basílinho ferreiro? E Calunguinha areeiro? E Netinho ourives? E porquê eles se tratavam no diminutivo. Era povo. Eis o povo… “…Não há maior dor/ que recordarmos o tempo feliz/ já a miséria…” [Inferno. Dante Alighieri] … e no tempo, era feliz. Bem vindos à história contada pelo tempo feliz, pleno. Dante diz que há dor em recordar; não sei. Quando recordo, recordo na plenitude e deixo o passado onde está, com todo seu glamour, sua dignidade. A dor mora na tentativa de trazer o passado para o presente, está em cada pessoa; as consequências são estragar o presente e estragar a dignidade do passado. A dor com as lembranças felizes são proporcionais à falta de dignidade das vivencias.
Giovanni Soderini, morto em 1596, escreveu em seu livro Tratado das Arvores: “que os frutos amadurecem, parte pelo calor e parte pelo frio, por isso o calor, como é evidente para todos, tem a força de cozimento e é a simples causa do amadurecimento”. Giovanni Soderini não estava errado, ele só ainda não sabia. Este é o meu conceito, viajar no tempo no tempo vivido e foi nesse tempo vivido, onde achei essa preciosidade. Na cumeeira da casa da fazenda estava essa telha! De uma hora para outra eu estava conversando com um desconhecido (ainda não consegui saber o nome dele) que me falava de 1912.
Longe de tudo, nos estertores da água, encosto da serra do sincorá, no limite da sobrevivência na caatinga está a casa, e na telha o recado para mim: Faz. Gurutuba 1912 acompanhado de um singelo rabisco. Ainda tem o número 101 escrito; esse número corresponde à contagem das telhas feitas na jornada, prática corriqueira até hoje, com variações de representação que pode ser unidade, dezena, dúzia… diz muito. Desfaz muitos mitos. Existiu telha feita nas coxas? Não, isso é impossível; fazer telhas é e era uma atividade industrial complexa, exigente de grande saber e domínio da atividade. Acredito ser um trocadilho, uma vivacidade ou até um erro, afinal as telhas eram colocadas nas coxias preparadas para receber. Há marcas do fio usado para cortar o barro, retirando o excesso. As fôrmas de madeira, ainda são usadas em pequenas olarias. É possível notar que o barro foi bem batido, também, não existe mancha escurecida entre a parte superior e inferior da telha (no meio da argila), indicando, conhecimento do oleiro quanto ao tempo de secagem e queima da telha. O supra-sumo é o recado escrito para eu ler; tente escrever na argila molhada, tente! Quando tiver oportunidade, tente. É difícil. Não, com letra de forma não vale; meu amigo, anônimo industrial do século passado, escreveu com letra cursiva e boa caligrafia, num tempo em que sequer a caneta esferográfica tinha sido inventada. Pode tentar o tanto que quiser, não conseguirá; pequenas cascas ficarão nas bordas das letras; para escrever do jeito que está na telha, é preciso uma ferramenta especial própria.
Não tinha como transportar uma grande quantidade de telhas, ou era caro demais, então, era a indústria que ia até a obra, tudo puxado no carro de boi; esse é o motivo de não ter sobrado ruínas das olarias. Todavia os buracos de onde se retirou a argila são testemunhas.
O ato de escrever na telha desse culto industrial provou a imensa, pouco estudada, e desprezada atividade econômica brasileira. O básico é desprezado. Resumem a atividade econômica ao que era exportado, esquecendo da atividade necessária a manutenção da população. Não só era feito as telhas para cobrir as casas, telhas maiores, mais compridas, eram feitas para servirem de canaletas onde os riachos corriam com isso maximizando o uso da água, viabilizando as fazendas. Agora, repara bem: tinha indústria cerâmica, tinha engenho de cana e destilaria, tinha canais de irrigação, tinha rendeiras, tinha bordadeira, tinha indústria de processamento da mandioca, tinha ferreiro, tinha quem sabia fazer e fazia pólvora e etc… Onde está esse povo falado nos livros!? Os que faziam tropelias!
A gestação da brasilidade aconteceu nos sertões. Ali foi parido o povo brasileiro.
Fim.