Caros leitores,
Como eles conseguiram fazer um povo a partir do nada, de nenhum traço de civilidade. Pode existir mil teóricas respostas e o problema está justamente aí, qual dessas teorias se encaixará na verdade incontestável de que conseguiram! Fizeram o povo brasileiro. Olhares atentos há muito tempo notaram essa intrigante nuance e, os viajantes deixaram anotadas suas impressões; foi o caso de Spix e Martius, dois austríacos, médicos e amigos de Leopoldina, a princesa. Viajaram por quase todo o Brasil e produziram um relato escrito riquíssimo; trivialidades; as condições do tempo naquele dia; o encontro com viajantes que levavam um carregamento de galinhas para vender na cidade do Rio de Janeiro; as consultas aos livros da alfandega; uma jóia de anotação: no livro de tábuas de marés na cidade de Cachoeira, na Bahia, consta o registro do tsunami que ocorreu após o terremoto que destruiu Lisboa (é intrigante; quem anotou não sabia do tsunami e certamente morreu sem saber até o que é um tsunami, entretanto, viu aquela maré desproporcional e anotou!); comentou sobre os livros que encontrou nas bibliotecas das casas onde ficou hospedado e as impressões sobre a cidade de Ouro Preto: “Como eles conseguiram em tão pouco tempo, a partir de nada, construir uma cidade”. É o atestado de nascimento, o povo brasileiro estava pronto!
Em primeira pessoa ouço o relato de uma lúcida senhora de 99 anos, muito bem humorada, sorriso fácil e que facilmente volta ao tempo de mocinha: “Viajei com papai, viajava sentada de lado na poltrona (vi uma sela poltrona na fazenda desta senhora e só achei citação nesse contexto em dicionários anteriores a 1935) eram quatro, cinco dias da fazenda até Caetité”. Tenho vontade de passar nessa estrada onde os viajantes Spix e Martius também passaram, viram e anotaram essa preciosidade sobre os habitantes de Rio de Contas: “… que, pela educação e riqueza, se distingue dos outros habitantes do interior da Bahia. O professor régio de latim, homem de ilustração verdadeiramente clássica, panteia que os frutos do espírito também amadurecem no mal afamado clima dos trópicos”. Grande professor! É uma verdade e o dia era 17 de outubro de 1818.
Infelizmente o nome deste professor de latim não foi citado, mas os frutos do espírito a que ele se refere, chegaram até o dia de hoje, e são inúmeros excelentes frutos! A saga da Manihot Esculenta Crantz ou Mandioca, conta muito deste amadurecimento espiritual. Inicialmente preparada pelos nativos silvícolas e dependendo da região do Brasil, às vezes mais elaborada, às vezes menos elaborada, sendo que não passava do que hoje denominamos de crueira, a mandioca chegou ao requinte dos deliciosos biscoitos de polvilho; só o trabalho do espírito é capaz de processar algo assim.
Lá nos idos do primeiro ciclo da cana de açúcar já existem relatos de fazendas onde jamais se comeu farinha de mandioca que não tivesse sido feita no mesmo dia, servida quentinha no jantar –nesse tempo o almoço era o café da manhã, o jantar era almoço e a ceia tinha o significado do que hoje chamamos de jantar-. Comi farinha feita na hora, verdadeiramente o sabor é outro, então nota-se a delicadeza do paladar das sinhás. Foi um grande salto pegar algo que servia para matar a fome e transformar em iguaria, entretanto ainda era pouco, o caminho é longo e a arte da cozinha é complexa. Esse caminho de como aconteceu é incerto, só que, o caminho do aprendizado é certo; foi trazido, testado e ensinado!
Um imenso empecilho existia e tolhia a passagem do conhecimento, as sinhás viviam pouco o que era devastador. Por outro lado as complexas engrenagens sociais rodavam e, perguntas simples como: o que servir nas delicadas porcelanas chinesas? Fizeram as sinhás, com a ajuda dos padres, mudar tudo para melhor; os padres tinham o conhecimento, as sinhás a mão de obra, os produtos e a paciência. Não tinham o chá preto, nem as torradas; descobriram o digestivo chá de laranja acompanhado do beijú de tapioca quentinho, crocante. Tão bem serviram tal iguaria que ficou relatado nas impressões dos viajantes da época –as sinhás eram educadas para serem matriarcas e assumir outra particularidade da formação do povo brasileiro, a sociedade matriarcal-. As cristaleiras foram enchidas com os magníficos biscoitos feitos com polvilho de mandioca, açúcar e leite de côco (tirado em finíssimo pano de algodão) proporcionando o mistério de sentir a comida derreter na boca. Nessa sociedade matriarcal as crianças não podiam ficar para trás, eram bem tratadas, precisavam comer guloseimas e outra difícil arte da cozinha teve de ser ensinada pelos padres: a arte de caramelizar. A mandioca virou beijú e o beijú virou doce; como? Adicionando açúcar branqueado e caramelizando de um lado, do outro lado acrescentando côco ralado em finíssimas tirinhas. Várias gerações de crianças “véias” se empanturraram com esta guloseima.
Muitos são os mitos, histórias mal contadas, a respeito da transformação da mandioca de raiz venenosa em delicados alimentos. As transformações não acontecem espontaneamente; é preciso indução. Deixe uma pessoa ao léu e em pouco tempo ela não saberá como cozinhar, foi desta forma que muitas das receitas desapareceram. Também corrobora para o nascimento nobre das receitas feitas a partir da mandioca, as outras receitas, como: o creme chantilly, o molho de mostarda, o hambúrguer… Todas nobres de nascimento. As delícias feitas a partir da mandioca nasceram das nobres mãos das sinhazinhas brasileiras.
Fim