Caros leitores,
Meu pai chamava de bolo de areia; talvez pela associação a cor branca; talvez por alguma brincadeira, quando criança, com areia ou na areia. Bem, de fato, e é fato, guardei na memória o nome desta delícia da culinária regional, especificamente de Canavieiras, feita com tapioca, leite de côco, açúcar, depois enrolado na palha nova (ainda não rachada) duma palmeira (Cocos botryophora) e assado num forno a lenha, como bolo de areia. Deve ser comido aquecido –ganha uma consistência tenra- e sempre acompanhado de uma xícara de café. Esqueça as modernidades as delícias são chatas no preparo e nos detalhes; o forno só pode ser limpado com vassourinhas feitas com pontas de palha que sobram, e a lenha usada é que dará o cheiro defumado característico. Não achei nenhuma citação nos relatos de viajantes do século XIX publicados, também em nenhum livro de receitas do século XIX, o que me leva a crer, que o bolo de areia é uma receita jovem. No fino tecido social-econômico há uma pista.
Quarenta e cinco anos atrás eu vi e assimilei o contexto; é curioso. Muito cedo, às treis horas da manhã, mulheres chegavam ao porto empurrando barracas com rodas, onde vendiam guloseimas e café. Quanto ao horário não é difícil de explicar, é na madrugada que o vento diminui, pode-se amainar as velas; a baía de Canavieiras fica com as águas plácidas permitindo às canoas chegarem ao porto com segurança. Quem chega tem fome tem frio, muitas vezes chovia então, algo quente e que não agrida o estômago (remédio era raro) era bem vindo; tudo oferecido era saudável, desde os bolos de tapioca e puba em muitas formas, ao mingau. O toque da magia, do encanto estava no leite: sendo o leite de vaca difícil (considere que tinha de ser comprado) usa-se o leite de côco. Os homens que descarregariam a canoa, e muitas vezes era descarregada imediatamente, também precisavam de energia extra; a mulher do mingau lá estava para vender, fazer negócios.
Sem marido, com filhos, sem instrução, com educação, sem dinheiro, com vontade, sem permissão (social ou econômica), com disposição; não eram poucas as mulheres nesta situação, numa época em que só a igreja católica fazia caridade. Provavelmente algumas tinham o passado nebuloso, com isso, seu convívio social era vetado; que problemão ajudar essas mulheres! Não para os padres, os caras pensaram em tudo! Desenvolveram as receitas, sempre leves e saudáveis; providenciaram as embalagens, limpas, bonitas, descartáveis e naturais; deram um charme incomum de limpeza ao orientar a servir o pedaço de bolo enrolado numa folha de bananeira; como a barraca tinha rodas não era preciso empatar capital num ponto comercial e antes do sol esquentar, já tinham ido embora; resolveram o problemão social levando elas para trabalharem na madrugada, num nicho lucrativo; enfim, modelaram um negócio e ainda deixaram as receitas das delícias que aos trancos e barrancos chegou aos dias atuais. Dito isso, afirmo: não mexa em nenhum dos passos, tudo é perfeito, até o enrolar do bolo na folha da bananeira, a gordura no bolo “puxa” o cheiro da folha da bananeira; é incrível!
Antes do início do século XX esse tipo de comércio, em barracas móveis no porto, não era possível ou era pouco lucrativo. As canoas partiam carregadas, mas, voltavam vazias, consequentemente podiam chegar ao porto a qualquer hora; o trabalho no porto era feito durante o dia. Outro dado interessante: nunca se encontrava o bolo de areia na feira livre; no porto tinha em todas as barracas. Como variante existe este mesmo bolo feito com puba, também muito bom. Pelo interiorzão do Brasil, nos sertões, não encontrei nada relacionado a esta receita, acredito que nada foi tentado até, pela dificuldade de encontrar côco com abundância.
Quando considero o uso do guardanapo feito com folha de bananeira e todos os benefícios, inclusive civilizatório, do ato singelo, vejo o peso da influência da mandioca na formação do povo Brasileiro. São milhares de receitas, que mudam, às vezes, até, com poucos quilômetros de distância; cada pedacinho do Brasil tendo recebido este ou aquele conhecimento, processou a mandioca de seu modo exclusivo; no todo deixou sua marca. Quer vêr? Basta procurar as receitas. Achando as receitas e olhando em volta, enxerga-se a vida!!
Fim.