Caros leitores,
Um galho qualquer estalou -eis minha sorte- e senti levemente um trepidar na terra, intenso! Tantos sentidos aflorados, a percepção focada naquela complexa perfeita construção, uma cerca de pedra! Quem ensinou a quem fez fazer? A arrumação das pedras, as junções sem argamassa, a perfeição de seu fim, cercar! de um lado o terreno está no topo da cerca, do outro, uns um metro e setenta abaixo está na base, e, nenhuma água de chuva corre junto; donde este conhecimento fantástico de engenharia veio? Papagaios passaram papagueando rumo às touceiras de côco de licuri e, ouvi um chocalho; uma intensa trepidação e um chocalho. Velho, a cascavel só não me pegou porque ficou presa embaixo do galho; e agorinha, (se é que existe) ela está ao lado do deus cobrão.
Bato o ponto no GPS “cascavel”, estamos numa altitude de 650 metros e a cinco quilômetros da sede. A cerca de pedra (uma perfeição!) me intriga, tenho vontade de passar a mão, de pegar; temo. Procuro atentamente uma falha nas junções, um deslocamento, nada; os papagaios papagueiam. Caminho um tanto observando, medindo, vendo meu imaginário palmo medir tudo; o papaguear dos papagaios me incomoda, é tempo de côco de licuri. O capataz traz outra cascavel pendurada numa vara; mau agouro. Queria chegar nas construções dos aquíferos bem mais acima, todavia, sem um bom cachorro farejador é perigoso. Cai uma chuva temporã e eu sinto um cheirinho de terra; por hoje chega, vamos voltar.
Puxa o grupelho por uma vereda recém-encontrada, o capataz; segue a frente, firme, conhecedor (sem nunca ter andado por lá!), senhor do mato e da situação. Logo para; aponta para um rastro de cotia: “está com filhote” diz. Mais alguns passos e vejo as pequenas pegadas da cotiazinha na terra úmida; certamente passaram em direção as touceiras de côco de licuri, será!? Mais papagaios passam, mas já não presto atenção; são os sofrês com o seu belíssimo canto que cadenciam os passos e, como por encanto, estamos embaixo de licurizeiros carregadinhos, a vida explode em beleza, fartura, vigor, diversidade; cada qual com o seu quinhão… quem fez assim? “Só a cotia e o catitu comem esses coquinhos do chão” disse o capataz; “são derrubados pelos papagaios após roerem a massinha de fora” replicou a senhora daquelas terras, nascida e criada ali; “conheço como côco engana vaqueiro, ele para pra comer um e termina perdendo o dia e o boi” diz, rindo, o vaqueiro. Assim perdi a hora, a fome, a sede, estava assistindo a uma conferência de gigantes, saberes e mais saberes, ditos, contos e histórias contadas, tradições, coisas aprendidas e compreendidas ensinadas pacientemente de geração em geração. Do céu vinha o canto do gavião e para a terra nos chamou à atenção o capataz mostrando as pegadas de uma onça; sua entonação de voz é nervosa: “ela teve aqui! ela teve aqui!”. A senhora das terras bateu o olho e determinou: esse e aquele cacho estão no ponto para tirar a balinha; tinha certeza. Mas, quem ensinou aos avós desse grupelho?
“Aprendi com meu avô!” (disse a senhora daquele mundo, daquelas terras) … quanta! complexidade na singeleza desta frase. E lá fui pegar o machado, lascar toretes de sebastião de arruda, botar as achas bem próxima ao fogão; feito. Eu não conhecia, nunca vi; e vi botar os cachos de côco de licuri num tacho grosso de cobre, fogo brando, um pouco mais de água, mais água, mais lenha, abre um pouco a tampa, ajeita a tampa para o lado da fumacinha, e vira, tira o cacho do tacho e bota com o outro lado pra cima, ajeita novamente a lenha, e diz: “esse está no ponto; olha a cor. Vai ficar bom”, e lembra, de tempos passados, e diz que vovô trazia os cachos presos na cabeça da sela, e conta mais casos, e… enfim cozido! Será bom? E lá vem outra aula: pega uma pedra maior, quadradinha; bota o coquinho em cima, bate com uma pedra menor, abre, e, ué!! Tem mesmo! Solta sem nenhum esforço uma balinha!! Muito bom! Sabor e gosto característico, inconfundível. Sobraram muitas, vamos botar para congelar.
Coisa gostosa é ver o nascer da noite; prazerosamente o rei sol entrega o cetro à rainha lua e vai descansar, nos deu tanto! Descanse em paz. Ouço o canto do gavião, vejo; enorme, voa em círculos. Quase a hora da ave-Maria. Horário meio displicente e displicentemente filosofo sobre o conceito da palavra “saudade”, não, não posso sentir saudade, não sou daqui, e … displicentemente, acho que procuro algo para deixar a alma mais leve, boto uísque no copo; as balinhas de côco de licuri congelaram, bonitinho aqueles gelinhos redondinhos, lindinhos; botei algumas balinhas. Provei, fui mastigando lerdamente o coquinho; combinou! Gostoso drink! Mais displicente ainda eu apreciava o segundo drink, quando ouvi uma voz desconhecida dizer: “Não vai me servir um drink, coronel.” Olhei; o gavião não estava no céu; reparei, e vi sentado em minha frente (reconheci não sei como) ninguém menos que o padre Antônio Pereira. Fiquei arrepiado! Ninguém menos que a cabeça tonsurada do castelo Garcia D’Ávila! Senhor de tudo e de todos! O homem que escolheu as pessoas para povoar aqueles sertões! O homem que formatou o conceito de brasilidade! Fez um povo! Padre Antônio Pereira! O coronel dos coronéis! Me olhou profundamente, viu minha alma; suspirou; disse: “Finalmente nos encontramos, coronel.” Servi o drink e brindamos a nossa estranha amizade (padre Antônio Pereira morreu em 1675); são 19:00 h e o coronelíssimo Antônio começou a contar-me: “Tudo começou…”
E deste jeito quase por acaso criei um drink, o “Drink do Coronel”; lá vai a receita:
—uma dose de uísque Cavalo Branco
—seis balinhas de côco de licuri congeladas.
São seis goles e seis balinhas, tomado com delicadeza para não pegar duas balinhas. Mas por que nós brasileiros falamos “tomar” e não “beber”? … coisas de coronéis!!
Fim.
Uma resposta
Alex sempre nos brindando com sua privilegiada pena..!! Que assim continue…..