Caros leitores,
Ainda tinha muito cacau, chovia cacau, cheirava a cacau, a vida no miolo da cacauicultura baiana, a região de Camacan, girava essencialmente através da dança de pisar o cacau nas barcaças. Tudo ainda parecia normal; não estava. Todos seriam derrotados, todos; e foram! Não se ouvia falar de outra coisa que não fosse a RIO 92, onde veremos o ovo da serpente da cultura woke eclodir liberando todos os demônios. Estamos em maio de 1991 e a vassoura-de-bruxa aliada à política de preço baixo promovido pela indústria moageira, mais a miserável cultura woke, mais o confisco da poupança de Collor de Melo, finalmente, jogou a cacauicultura no chão. Não foi um processo lento, foi como em uma guerra, as fazendas foram esvaziadas rapidamente, os trabalhadores foram dispensados e sem trabalho foram para as cidades; foi interessante ver este momento, os carros de mudança passavam um atrás do outro e fazer mudança se tornou um negócio próspero.
Deus é bom ele dá a vida para todos; também é brincalhão, pois entrega a chave da felicidade ao anjo da guarda, ou seja, é pessoal e intransferível! Neste contexto vi de tudo, vivenciei a peãozada chegando às cidades com o dinheiro das rescisões de trabalho; qualquer barraco de madeira pegou preço. Rapidamente os orgulhosos trabalhadores que ostentavam na parede da sala, das confortáveis casas nas fazendas, o “diploma” de Podador de Cacau, ou Operador de Atomizador Costal, ou etc… diplomados pela CEPLAC em cursos na EMARC, tornaram-se boias-frias; iam somente roçar e colher, aliás derrubar o cacau. Até isso mudou, o trabalhador delicadamente colhia o cacau, tirava o chupão, cortava algum galho seco; o boia-fria de fato só derrubava o cacau. Aconteceu, com o recebimento das rescisões dos contratos de trabalho, uma rápida e imensa transferência de recursos, assim o comércio nas cidades prosperou, bebia-se cerveja como se bebe água e enfim as cidades pequenas entraram em festa; além da peãozada, os fazendeiros empobrecidos chegaram da capital trazendo seus vistosos Ford Del Rey, então, aconteceram histórias de amor, de tragédia, de morte, de superação, de loucura, de perseguição, engraçadas, de ódio, e de como a roda do Deus Fortuna gira!
Do cafundó de alguma fazenda saiu Dina com seus três filhos; com o dinheiro da rescisão; mais a cara; a coragem (ou foi à fraqueza e o medo que fez a coragem?); e as mãos de fada para cozinhar. Sua história tinha acabado! Mas a roda da fortuna girou fazendo-a comprar a última casa de uma rua, do lado da sombra da tarde, com uma árvore na porta… e botou um boteco. Quem não viveu não vive mais, vivi e vi tudo acontecendo, virando história.
Caía à tarde e os Fords Del Rey iam chegando, muitos! Eram as delícias da culinária grapiúna que atraía a todos; carne charque com farofa d’água; taioba mansa refogada; omelete de taioba; “batata” da taioba com arroz e carne do sol (feita com carne de vaca velha); moqueca de acari; piaba salgada frita (bem crocante); banana da terra e da prata cozidas; moqueca de ovo de boi; moqueca de ovo de galinha; ensopado de galo velho com chuchu; feijão com cabelouro; moqueca de miolo de boi; galinha velha ao molho pardo; moqueca de mamão verde com charque; costela gorda com verduras e caroço de jaca; carne charque dois pelos ou de cupim assado na brasa; feijão “derruba um” (é cozido com charque e todas as verduras que conseguir, mais a taioba refogada); para refrescar suco de limão tangerina; caças preparadas com folhas de mandioca e muito limão galego, mas como já tínhamos [uma idiota] consciência ambiental, Dina NÃO cozinhava paca, capivara, saruê, nada disso! Importava carne de baleia caçada por japoneses ou noruegueses, caçam até hoje e não é crime; carne de foca caçada na Groelândia; carne de javali caçado na França, tudinho legalizado! Cada dia uma iguaria diferente; quem viajava para Salvador trazia farinha de Santo Antônio de Jesus; pimenta verde para o molho lambão chegava em galhos e era diversão debulhar tomando cerveja, conversando das possíveis soluções para a vassoura-de-bruxa, apostando na milagrosa calda de fumo com água do mar e mais uns segredinhos desenvolvida por um cacauicultor (Guri); vendo a CEPLAC afundar intencionalmente num imobilismo até então incompreensível, e, perfumando com os caros perfumes o “Bar de Dina”.
Os cacauicultores tinham chegado ao fundo da gaveta, as camisas de algodão e linho tinham acabado; restavam as de seda. Era um contraste difícil de compreender por um desavisado que passasse; pessoas vestidas de seda num boteco de madeira e telhado de Eternit, divertindo-se, comendo e bebendo; era o “Casquinha de Siri” na mata do cacau! Até banda de música tinha! Daí um foi ajudando, outro também, surgiu uma puxada e começou as inesquecíveis noitadas; tudo improvisado! Numa destas aconteceu o previsível de desfecho imprevisível, o cantor embebedou de cair e perdeu a voz. Targino Boca Rica de hora em hora dava gorjeta para a música não parar, o tecladista enrolou o que pode; estava em desespero. Eis que algum anjo fez aparecer uma cantora, toda envergonhada, dizendo que sabia cantar a música undererê (Eliana de Lima /Desejo de Amar), mas só sabia essa! Sucessão total a pista de dança lotou! A cantora, de beleza legitimamente grapiúna, entrou em transe de tanta felicidade, ganhou aplausos; ganhou “fi fiu”; e cantou de novo undererê! Felicidade geral. O tecladista enrolava duas músicas e novamente a cantorazinha tacava o undererê. Assim o festão comeu no birro setenta; Velhão Top,Top,Top com a camisa ensopada de suor prometia incansavelmente levar a atriz para cantar no “Casquinha de Siri”, e depois num cassino em Las Vegas… cerveja era servida as dúzias, quando, pelas três da madrugada, Damião cacau maduro me agarrando pelo pescoço perguntou “pôrra, eu tô bêbado ou essa banda só toca uma música? Esse undererê não para!” Até hoje dou risada disso!!!
Foram muitas memoráveis festas, muitas. Dizem que sim, que ela cantou no “Casquinha de Siri”; não vi. Mas afirmo! Velhão cumpriu a promessa de levar.
Coronel Xela.
Respostas de 7
Adoraria ter conhecido o “bar da Dina” tudo parece ter sido espetacular até da pra sentir o gosto da taioba humm! E dançar uma festa inteira com uma música só inimaginável e ao mesmo tempo maravilhoso. Obrigada por essa carona no túnel do tempo. Amei, parabéns Alex!!
Até domingo !!
Como sempre e com toda a classe a escrita,boa de ler e reler.
Undereré para todos !
Mais uma excelente crônica com bom humor e riqueza de detalhes!
Del Rey kkkkkk
Ainda hei de ter um morando em São João Del Rey.
Segue a vida. Ciclos se encerram outros começam e nós seguimos.
Eu li esse kkkkkkkk e gostei!!! Parabéns!!!
Parabéns mais uma vez meu nobre Coronel, o último da confraria…mas, cá pra nós, me diz uma coisa, qual música era a tal undererê, era tipo a “farofafá” ou seu amigo tava bebum mesmo ?
Até o final foi glorioso!